Sob a égide da ética do crime. Ou: A ética dos Renans, dos Dirceus e um livro. Ou: É permitido matar a velha a machadadas?
Resolvi manter este texto, publicado às 18h42 de ontem, no alto da home. Abaixo dele, há os posts da madrugada deste sábado.
Renan
Calheiros (PMDB-AL), reconduzido à Presidência do Senado, resolveu
exibir musculatura filosófica no discurso oficial como candidato ao
posto. E disparou: “A ética não é um objetivo em si mesma. O objetivo em si mesmo é o interesse nacional. A ética é meio, não é fim”.
Que coisa! O candidato falava, então, em termos abstratos, conceituais,
e a paixão especulativa poderia nos devolver lá a Aristóteles, passando
por Kant e chegando a Spinoza — depois de devidamente desprivatizado,
já que, no Brasil, Marilena Chaui se quer a intérprete oficial do autor;
se a obra de Spinoza fosse “A Valquíria”, Marxilena se apresentaria
como Maria Callas… Mas que se deixe a abstração de lado. O voo teórico
de Renan se fez ética encarnada na voz do senador Lobão Filho (PMDB-MA),
que chegou à Casa como suplente de Lobão Pai, hoje ministro das Minas e
Energia: “Nessa Casa não há nenhuma vestal. A última vestal que
tentou ser vestal nessa Casa foi desossado pela imprensa. Não há
ninguém a levantar o dedo para o senador Renan Calheiros”. O Lobinho é o homem do Lobão!
Ele se
referia certamente a Demóstenes Torres, defenestrado por bons motivos do
Senado, como todo mundo sabe. Mas que se note: Demóstenes não perdeu o
mandato porque se apresentasse como vestal; ele foi cassado porque não
praticava, na vida pública, aquilo que enunciava e anunciava. Quando
aquele senador caiu, os valores éticos não caíram com ele. É espantoso!
Hoje em dia, intelectuais de esquerda, os petistas e tipos como Lobinho
passaram a demonizar o discurso da ética e da moralidade públicas. Ele
seria sempre e necessariamente falso; só poderia se exercer como
moralismo de fachada. Nessa perspectiva, não se deve mais censurar este
ou aquele pelo crime cometido; cumpriria, então, indagar: “Mas por que
ele fez tal coisa? O fim é nobre?”.
De fato, a
ética não é uma finalidade em si, mas um instrumento. Só que há uma
consideração que certamente não passa pelo amoralismo de Renan Calheiros
e dos setores da esquerda que são hoje seus aliados: os meios empregados qualificam os fins.
Se Maquiavel retirou a política da esfera quase celeste e a devolveu à
terra ao constatar que, na vida real, os fins acabam justificando os
meios, tomada tal perspectiva como um norte ético, mergulha-se, então,
no vale-tudo.
Não, meus
caros! Nem Aristóteles, nem Espinosa, nem Kant. O livro que trata de
forma mais viva e cruenta a questão da ética é o magistral “O Zero e o
Infinito”, escrito pelo ex-comunista Arthur Koestler, que veio à luz em
1941. Ele precisou de muito menos tempo do que outros para constatar os
crimes do comunismo. O centro da obra é justamente um questionamento
ético. Entre 1936 e 1938, Stálin — tratado no livro como o “Nº 1” —
liquida boa parte da velha-guarda revolucionária no curso dos chamados
“Processos de Moscou”, uma farsa judicial espantosa para se consolidar
como a única fonte de poder da União Soviética. Os “processos” são
especialmente espantosos porque conduzidos de forma a criar uma
maquinaria argumentativa que levava os acusados a confessar a sua culpa,
embora soubessem que isso não os livraria da morte, à qual já estavam
condenados. A acusação essencial: conspirar contra o estado soviético, a
revolução socialista e o partido.
É esse
clima que Koestler reproduz em seu livro. Rubachov é um comunista
revolucionário de primeira hora que está preso, acusado de conspiração e
traição. Somos apresentados a seus diálogos com seus algozes, todos
eles a serviço do partido e da causa. Ocorre que se formara ele também
na certeza de que o partido não errava nunca e de que não se iria
construir uma nova humanidade sem cometer alguns atos condenados pela
moral burguesa.
Um trecho
do livro é particularmente significativo. Rubachov conversa com Ivanov,
um policial do regime com certas pretensões filosóficas. Este faz
algumas considerações sobre Raskolnikov, o jovem assassino de “Crime e
Castigo”, de Dostoiévski, aquele que mata uma velha exploradora a
machadadas para supostamente usar o seu dinheiro em benefício da
humanidade. Raskolnikov acaba confessando a sua culpa e busca a
reabilitação.
Para
Ivanov, o policial, “Crime e Castigo” é um livro que deveria ser
queimado porque não propõe nenhuma questão relevante. Entende que
Raskolnikov “é um louco, um criminoso, não porque se comporte
logicamente ao matar a velha, mas porque está fazendo isso por interesse
pessoal”. E acrescenta: “O princípio de que o fim
justifica os meios é e continua sendo a única regra da ética política.
Tudo o mais é conversa fiada e se derrete, escorrendo por entre os
dedos. Se Raskolnikov tivesse matado a velha por ordem do Partido (por
exemplo, para aumentar os fundos de auxílio às greves ou para instalar
uma imprensa clandestina), então a equação ficaria de pé, e o romance,
com seu problema ilusório, nunca teria sido escrito, e tanto melhor para
a humanidade”.
Como vocês
percebem, para Ivanov, o assassinato mais torpe se enobrece se a causa é
considerada não exatamente justa, mas útil. O programa do computador
deu pau (daí a demora em voltar…), e estou digitando trechos do livro.
Rubachov responde que, no poder, os revolucionários conseguiram criar
uma sociedade pior do que aquela que buscavam substituir, que as
condições de vida se deterioram dramaticamente em todas as áreas, que as
pessoas sofrem muito mais.
Ivanov então responde: “Sim,
e daí? Não acha maravilhoso? Alguma vez já aconteceu algo mais
prodigioso na história? Estamos tirando a pele velha da humanidade e lhe
dando uma nova. Não é uma ocupação para gente de nervos fracos”. O policial já havia dito ao líder comunista que caíra em desgraça que só
há duas éticas no mundo, opostas e inconciliáveis: uma é a cristã e
humana, que declara que o homem é sagrado e que os princípios da
aritmética não podem ser aplicadas a unidades humanas; a outra é a
coletiva, que subordina cada homem às necessidades do coletivo; esta
outra, que é a sua, diz ele, “não somente permite como pede que o
indivíduo seja de todas as maneiras subordinado e sacrificado à
humanidade”.
De volta a Renan
E o que Renan tem com isso? É um legítimo representante ou herdeiro da esquerda, por acaso? Até namorou com o PC do B quando jovem, mas isso não tem importância. Relembro “O Zero e o Infinito” porque nenhuma obra levou tão longe e de maneira tão viva o questionamento ético. A elite dirigente que hoje comanda o país transformou em norte moral a máxima de que o fim justifica, sim, os meios empregados. Essa visão de mundo contamina setores da imprensa. Quantos não são aqueles que justificam a aliança da velha com a nova oligarquia em nome do interesse nacional?
E o que Renan tem com isso? É um legítimo representante ou herdeiro da esquerda, por acaso? Até namorou com o PC do B quando jovem, mas isso não tem importância. Relembro “O Zero e o Infinito” porque nenhuma obra levou tão longe e de maneira tão viva o questionamento ético. A elite dirigente que hoje comanda o país transformou em norte moral a máxima de que o fim justifica, sim, os meios empregados. Essa visão de mundo contamina setores da imprensa. Quantos não são aqueles que justificam a aliança da velha com a nova oligarquia em nome do interesse nacional?
A “ética”
de que fala Ivanov é aquela que entrega a um partido, a um ente, o
destino da humanidade e de cada homem. Sim, ele está certo na
constatação, entendo eu, de que, a rigor, só existem duas éticas: a que
sacraliza o indivíduo e a que o transforma em peça de uma narrativa
contada por aquele ente de razão. O que nos distingue, por óbvio, é que
fico com a primeira, e ele, com a segunda.
O Brasil
passa por um momento particularmente infeliz no que diz respeito à ética
porque, com efeito, o PT é herdeiro moral do vale-tudo bolchevista —
sem mais ser, por óbvio, comunista. E, em nome do que vende como “causa
da humanidade”, não só pratica os piores crimes como os transforma em
ferramenta de progresso social, como faz Ivanov. Esse amoralismo
redentor, que apela a amanhãs gloriosos, se casou perfeitamente com os
interesses das elites reacionárias brasileiras, de que são expressões os
Renans, os Sarneys etc.
Se uns
nunca tiveram têmpera revolucionária, os outros a empregam como farsa.
Porque, de fato, se os reacionários nunca tiveram como perspectiva um
novo mundo, os supostamente revolucionários queriam era dividir o
comando da reação. E conseguiram. Os dois grupos se dizem hoje irmanados
na defesa do bem comum, em nome do qual tudo é permitido.
O conjunto
explica por que José Dirceu sai proclamando aos quatro ventos que as
críticas a Renan derivam do moralismo udenista. Dirceu é o candidato a
Ivanov dessa nova ordem. E Ivanov já disse: Raskolnikov, o que matou a
velha a machadadas, só não era um herói porque não agiu sob o comando do
partido, de uma causa.
Não sei se
daqui a dois, seis, 10, 14 ou mais anos… Um dia essa gente será apeada
do poder. E poderemos, ou outros poderão, refletir com ainda mais rigor
sobre a era em que vivemos sob a égide do crime sem castigo. Os que
chamamos as coisas por seus respectivos nomes fazemos a crônica de um
tempo.
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