Se em meu ofício, ou arte severa,/ Vou labutando, na quietude/ Da noite,
enquanto, à luz cantante/ De encapelada lua jazem/ Tantos amantes que
entre os braços/ As próprias dores vão estreitando —/ Não é por pão, nem
por ambição,/ Nem para em palcos de marfim/ Pavonear-me, trocando
encantos,/ Mas pelo simples salário pago/ Pelo secreto coração deles.
(Dylan Thomas — Tradução de Mário Faustino)
MP de São Paulo recebe amanhã acusações que Marcos Valério faz a Lula. Ou: O dia em que Marilena Chaui comparou o Apedeuta a uma deusa grega
O
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, encaminha amanhã à seção
paulista do Ministério Público Federal as acusações que o empresário
Marcos Valério, principal operador do mensalão, faz a Lula. Não é pouca
coisa. Valério não só diz que o Apedeuta sabia de tudo e sempre esteve
no controle do mensalão como sustenta que foi um dos seus beneficiários.
O dinheiro para seu uso pessoal teria sido depositado na conta do
faz-tudo Freud Godoy. Com efeito, a CPI dos Correios encontrou repasse
da agência de Valério para o carregados de malas.
Muito bem!
O procurador que receber o papelório vai decidir se abre investigação
ou se pede o arquivamento do caso. Os petistas tratam como um atentado à
democracia a possibilidade de Lula vir a ser investigado e se tornar
réu numa ação criminal.
Há nisso
muito de politicagem vulgar, mas também há uma espécie de crença, em
vários setores do PT, na infalibilidade de Lula, quem sabe na sua
divindade. E ele não faz por menos, como é sabido: expõe-se à adoração.
Tivesse atravessado o Mar Vermelho com Moisés, não duvidem: teria
liderado a turba contestadora, impaciente com a demora do Patriarca, e
seria o primeiro a propor um de ídolo de ouro: em vez do bezerro,
ofereceria a si mesmo como modelo. Se não conseguisse destituir Deus,
daria um jeito de, quando menos, tirar Moisés da história…
Não pensem
que isso começou com o, como chamarei?, “petismo popular”. De jeito
nenhum! O povo é muito menos mistificador do que aqueles que se dizem
“intelectuais petistas”, essa contradição dada pelos termos.
Contradição? Não pode haver petista culto? Claro que sim! Eu me refiro a
“intelectuais” como pessoas comprometidas com a ciência e com o
pensamento. Ou bem se busca servir à verdade ou bem se busca servir a um
partido.
Muito bem!
Em julho de 2003, Marilena Chaui — uma das inventoras da tese vigarista
de que a denúncia do mensalão era uma tentativa de golpe — concedeu uma
entrevista à revista Primeira Leitura, que eu dirigia. Conversou com o
jornalista Fernando Eichenberg, em Paris. Ele lhe dirigiu, então a
seguinte pergunta:
A
sra. não acha que Lula despolitiza talvez em demasia sua própria
trajetória, repisando o mito do homem milagreiro, do político
milagreiro, do evento milagreiro, mais ou menos nos termos pela sra.
apontados no livro “Brasil, Mito Fundador e Sociedade Autoritária”?
A resposta
de Marilena, aquela que já afirmou que, quando Lula fala, o mundo se
ilumina, foi fabulosa. Ela comparou seu líder à deusa grega Métis (vocês
saberão detalhes). Vale a pena ler a íntegra da resposta. Volto depois.
*
Há no Lula um traço que é a marca ocidental do homem político. Há um trabalho feito nos anos 80, pelo Jean Pierre Vernant, sobre um aspecto da cultura grega clássica, segundo o qual os gregos consideravam a prática, contraposta à inteligência teórica. Essa inteligência prática ficava sob a proteção de uma deusa chamada Métis. As características da pessoa dotada de Métis, ou dessa inteligência prática, eram as seguintes: golpe de vista certeiro, ou seja, ela era capaz de, num único golpe de vista, perceber o todo; tinha o senso da oportunidade, ou o sentimento do kairós, do momento oportuno, em que momento intervir, em que a ação seria eficaz; tinha a capacidade de encontrar ou de criar um caminho onde não havia caminho: diante da aporia, do aporós, abre um caminho; e era dotada da capacidade da espreita, de saber observar de longe, de espreitar e de produzir uma estratégia para intervir.
*
Há no Lula um traço que é a marca ocidental do homem político. Há um trabalho feito nos anos 80, pelo Jean Pierre Vernant, sobre um aspecto da cultura grega clássica, segundo o qual os gregos consideravam a prática, contraposta à inteligência teórica. Essa inteligência prática ficava sob a proteção de uma deusa chamada Métis. As características da pessoa dotada de Métis, ou dessa inteligência prática, eram as seguintes: golpe de vista certeiro, ou seja, ela era capaz de, num único golpe de vista, perceber o todo; tinha o senso da oportunidade, ou o sentimento do kairós, do momento oportuno, em que momento intervir, em que a ação seria eficaz; tinha a capacidade de encontrar ou de criar um caminho onde não havia caminho: diante da aporia, do aporós, abre um caminho; e era dotada da capacidade da espreita, de saber observar de longe, de espreitar e de produzir uma estratégia para intervir.
Os gregos
consideravam que havia alguns tipos sociais que eram dotados de Métis:
os capitães de navio, os médicos, os caçadores e os estrategistas
militares. Mas a figura que reunia todos os traços da Métis, que era a
Métis praticamente encarnada, era o político. O homem político grego era
dotado dessas características da Métis. Eu considero o Lula um animal
político. Na medida em que ele é dotado dessas características que são
constitutivas da figura ocidental do político, ele não pode
despolitizar, mesmo que ele queira, porque o modo de ver o mundo é um
modo político. É vê-lo como totalidade, como tempo aberto, como conjunto
de dificuldades e de aporias, como aquilo que se tem de observar e
sobre o que se tem de intervir.
Em relação
ao discurso do Lula, alguns dizem que é um discurso populista. Ora, o
líder populista é aquele que pertence ou à classe dominante ou ao setor
aliado da classe dominante. E é aquele que se apresenta para o povo como
o protetor, o guardião, como se esse povo fosse imaturo, vivesse na
minoridade, incapaz de se conduzir a si mesmo. Isso é o populismo.
Nenhuma dessas características se pode atribuir ao Lula. Ele não vem da
classe dominante; ele não se dirige a um povo imaturo e incapaz de se
dirigir; ele não se propõe a ensinar a esse povo esse bom caminho,
porque, se ele tivesse de fazer isso, não teria sido eleito presidente,
na medida em que ele é a expressão desse povo. Então, há uma
impossibilidade lógica, para usar uma expressão do Paulo Arantes, de que
ele seja um líder populista. É dito também que ele é um líder
messiânico. O messianismo possui duas grandes características no Brasil.
Primeiro, é milenarista, coisa ausente do discurso ou da ação do Lula. A
segunda característica é a componente teológico-política, ou seja, de
que o governante é um representante de Deus, que ele transcende a
sociedade e a controla por mandato divino, o que Lula também não diz.
O fato de
que, no discurso, Lula invoque Deus, é porque ele é um homem religioso.
Nem é uma invocação ao reino de mil anos de felicidade, produzido pela
ação justiceira dos santos, nem é ele representante de Deus na Terra. É
má-fé dizer que ele é messiânico, sobretudo porque é chamado de
messiânico por quem faz ciências sociais e que, portanto, sabe o que é o
messianismo. O Lula tem uma estrutura discursiva que vi sendo empregada
por ele desde 1978. É a maneira que tem de se exprimir. Sobretudo,
quando se diz que ele improvisa, não lê, vai falando qualquer coisa. Uma
vez, conversei com ele, e ele me disse que, para poder realmente se
dirigir a um interlocutor, precisa perceber o que o está pensando,
sentindo, precisa do olhar do interlocutor. A escrita rompe a relação.
Isso é uma das coisas mais definidoras do discurso político, porque é
aquele que se dirige diretamente ao outro; não é à toa que a política
nasceu na assembleia democrática. O Lula fala a interlocutores
determinados, estabelece o vínculo típico de quem fez aprendizado na
assembleia, porque é assim que ela funciona. Isso é uma característica
muito marcante dele.
Outra
coisa é o fato de ele usar metáforas e provérbios. Qualquer um de nós
que tenha nascido e vivido no interior do país sabe que o homem do
interior, seja o sertanejo ou o caipira paulista, por exemplo, fala por
provérbios. A minha bisavó, que era baiana, falava por provérbios e
metáforas. O [Monteiro] Lobato, falando do caipira paulista, fala por
provérbios. Peguem-se as grandes personagens do Guimarães Rosa, elas
falam por sentenças, máximas e provérbios. Isso é constitutivo da
cultura popular brasileira. Quando eu era ainda adolescente, li, em
algum lugar, o [Jean-Paul] Sartre dizendo que sempre ficou muito
impressionado com os provérbios e as máximas populares porque exprimem
uma sabedoria pessimista sobre o ser humano. Não necessariamente, mas,
de um modo geral, sim. Vou usar um provérbio. O provérbio “é confiar
desconfiando”. Há uma maneira popular de se exprimir, universal, e é por
provérbios e por máximas. Depois, essa é uma maneira pela qual a
cultura popular no Brasil se exprime. Então, tem-se um nordestino, do
interior do país, que é formado nessa cultura e exprime por meio dessa
cultura. Portanto, dizer que é um discurso imbecilizante, paralisante,
estúpido, ignorante, é repetir o preconceito, a exclusão e a divisão
levada ao seu extremo. O que se exige dele é que se desfaça do direito
de se exprimir a partir de onde se formou. Penso que, das críticas
preconceituosas feitas ao Lula, essa tem sido para mim a mais chocante,
porque ignora de onde ele veio. Como ele não produz uma frase em
francês, um conceito em inglês ou boutade em alemão, diz-se que é um inculto que diz coisas imbecis, quando, na verdade, é uma maneira de organizar o mundo.
É
interessantíssimo, porque Guimarães Rosa é valorizadíssimo por ter
sabido operar com isso. Aquele mesmo que se desvanece diante do trabalho
que Guimarães fez sobre esse modo de falar fica horrorizado quando
encontra alguém que fala como o Riobaldo. Acho isso inacreditável. Uma
pesquisadora portuguesa fez um estudo sobre as discriminações sociais no
Brasil pelo uso dos provérbios, das sentenças e das máximas. Ela diz
que a classe dominante se dá o direito de produzir máximas, mas não
admite a produção nem de máximas nem de sentenças pelos dominados e
repudia os provérbios. Quando se ouve intelectuais de esquerda a dizer
isso, dói. Dói no estômago.
Voltei
Marilena, a douta professora de filosofia, como se vê, transforma, literalmente, Lula numa divindade, dotado de um saber natural, que ele extrai das pessoas. Não tendo como negar os aspectos obscurantistas da fala do seu líder, ela os atribui, então, ao “povo”. Tem-se, pois, como corolário, e isto está mais do que sugerido na resposta, que criticar Lula corresponde a rejeitar o próprio povo.
Marilena, a douta professora de filosofia, como se vê, transforma, literalmente, Lula numa divindade, dotado de um saber natural, que ele extrai das pessoas. Não tendo como negar os aspectos obscurantistas da fala do seu líder, ela os atribui, então, ao “povo”. Tem-se, pois, como corolário, e isto está mais do que sugerido na resposta, que criticar Lula corresponde a rejeitar o próprio povo.
Escrevi, à época, um textinho na revista explicando quem era, afinal, a tal Métis. Reproduzo em azul:
Há algo de
curioso, até engraçado, na associação que a professora Marilena Chaui
faz entre a deusa Métis e Lula. Talvez seja preciso cavoucar um pouco os
simbolismos. Métis é o nome grego de Prudência, a versão latina da
deusa que foi a primeira mulher de Zeus (Júpiter). Foi ela quem deu uma
poção a Cronos (Saturno), que o fez vomitar, junto com uma pedra, todos
os filhos que houvera engolido. Zeus a seduziu. Ao saber que estava
grávida e que estava destinada a ter um filho que seria rei dos deuses e
dos homens, ele não teve dúvida: engoliu a mulher grávida. Passou mal,
com uma terrível dor de cabeça. Pediu a Hefestos (Vulcano) que lhe
abrisse o cérebro, e, de dentro, brotou Palas Atena (Minerva), deusa da
sabedoria, da guerra, da ciência e das artes, que tomou assento no
conselho dos deuses e passou a ser a principal conselheira do pai. O
pássaro predileto de Palas Atena é a coruja. Assim como a inteligência
ilumina os problemas, os olhos da ave atravessam a escuridão. Se Lula é
mesmo Métis, tomara que se deixe “engolir”, no melhor sentido possível,
pelas instituições e que seja a democracia o resultado dessa fusão. Por
enquanto, o risco de que se torne mero petisco dos antigos vícios
políticos parece grande. Por enquanto, como Cronos, Lula só engole os
próprios filhos — no pior sentido possível.
Concluindo
Era julho de 2003. Lula estava no poder havia apenas sete meses, e a maquinaria ideológica que tentaria transformá-lo num ente acima da política e das paixões humanas já estava em curso — Primeira Leitura estava atenta a ela. Naquele primeiro ano de governo, o Apedeuta enfrentava mesmo era a oposição do petismo, e os principais esteios de Antonio Palocci no Congresso, acreditem!, eram o PSDB e o PFL… Não sem certa razão: os dois partidos resistiam ao PT mais rombudo, que queria fazer bobagem na economia. A oposição fazia bem em dar apoio ao que, afinal, era o mais racional em economia, mas já errava brutalmente ao não politizar as promessas que Lula, felizmente, ia quebrando.
Mas volto a Marilena e ao mito. Aquele
que a petista vê como uma divindade está associado ao que há de pior na
política brasileira e é, em último caso, o arquiteto da chegada de
Renan Calheiros à Presidência do Senado. Vamos ver se o Ministério
Público e a Justiça lhe devolvem a humanidade e o confrontam,
finalmente, com parte de sua obra.Era julho de 2003. Lula estava no poder havia apenas sete meses, e a maquinaria ideológica que tentaria transformá-lo num ente acima da política e das paixões humanas já estava em curso — Primeira Leitura estava atenta a ela. Naquele primeiro ano de governo, o Apedeuta enfrentava mesmo era a oposição do petismo, e os principais esteios de Antonio Palocci no Congresso, acreditem!, eram o PSDB e o PFL… Não sem certa razão: os dois partidos resistiam ao PT mais rombudo, que queria fazer bobagem na economia. A oposição fazia bem em dar apoio ao que, afinal, era o mais racional em economia, mas já errava brutalmente ao não politizar as promessas que Lula, felizmente, ia quebrando.
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