Independente de quaisquer disfarsatez tanto dos países latinos, quanto
das potências oprimentes, e ainda das certezas que se podem dar à
"liberdade de imprensa" brasileira, e ainda aos interesses diversos dos
paraguais elitistas (ou de brasileiros que imputam pseudo-informações na
net), mesmo com a esmagadora massa popular brasileira não conhecendo
nada ou quase nada da história paraguaia (quiçá a do Brasil), para os
que conseguem ver alguma coisa no horizonte sombrio da "democracia"
brasileira, não nos parece em diversos pontos da narrativa de Avalos que
descreve a nossa situação?
Att,
Alexander Von Humboldt
CHIQUI AVALOS
“A história do Brasil, vista do Paraguai, é outra”
(Millôr Fernandes)
Como num verso célebre de meu inesquecível amigo Vinicius de Moraes,
“de repente, não mais que de repente”, alguns governos latino-americanos
redescobrem o velho e sofrido Paraguai e resolvem salvar uma democracia
que teria sido ferida de morte com a queda de seu presidente. Começa aí
um engano, uma sucessão de enganos, mentiras e desilusões, em proporção
e intensidade que bem serve a que se componha uma melodiosa guarânia,
mas de gosto extremamente duvidoso.
Sucedem-se fatos bizarros na vida das nações em pleno século XXI. Uma
leva de chanceleres, saídos da espetaculosa e improdutiva Rio+20,
desembarca de outra leva de imponentes jatos oficiais no início da
madrugada de um incomum inverno, e ─ quem sabe estimulados pela baixa
temperatura ─ se comportam com a mesma frieza com que a “Tríplice
Aliança” dizimou centenas de milhares de guaranis numa guerra que
arrasou a mais desenvolvida potência industrial da América Latina.
Surpresos? Não é para menos. Éramos ricos, muito ricos,
industrializados, avançados, educados, cultos, europeizados, amantes das
artes, dos livros, das óperas, do desenvolvimento. Nossos antepassados
brilharam na Sorbonne e assinaram tratados acadêmicos, descobertas
científicas ou apurados ensaios literários. A menção de nossa origem não
provocava o deboche ou ironia tão costumeiros nos dias tristes de hoje,
mas profunda admiração e curiosidade dos que acompanhavam nossa
trajetória como Nação vencedora. Não ficamos célebres como
contrabandistas ou traficantes, mas como povo empreendedor e
progressista. A organização de nossa sociedade, a intensa vida cultural,
o progresso econômico irrefreável, a bela arquitetura de nossas
cidades, nossos museus e livrarias, a invulgar formação cultural de
nossa elite, a dignidade com que viviam nossos irmãos mais pobres (sem
miséria ou fome) impressionavam e merecem o registro histórico.
A rainha Vitória, que não destinou ao resto do mundo a mesma
sabedoria com que governou e marcaria para sempre a história do Reino
Unido, armou três mercenários e eles dizimaram a potência que, com sua
farta e boa produção e espírito desbravador, tomava o mercado da antiga
potência colonial do lado de baixo do Equador. Brasil, Argentina e
Uruguai nos arrasaram. Nossos campos foram adubados pelos corpos de
nossos irmãos em decomposição, decapitados à ponta de sabre e com
requintes de sadismo. O Conde D’Eu, marido de quem libertaria os negros
da escravidão e entraria para a história do Brasil, comandava pessoal e
airosamente o massacre. Os historiadores, essa gente bisbilhoteira e
necessária, registraram seu apurado esmero e indisfarçável prazer. O
nefasto delegado Sérgio Fleury teve um precursor com quase um século de
antecedência…
Nossas cidades terminaram por ser habitadas por populações
majoritariamente compostas de mulheres e crianças. Poucos homens
restaram do genocídio perpetrado. Pedro II, que marcaria a história do
Brasil por sua honradez, comportou-se de forma impressionante nessa
obscura página da história do Brasil, mas inversamente conhecidíssima na
história de meu país: não moveu uma palha ou disse palavra acerca do
sadismo de seu genro criminoso. Documentos por mim revirados no Arquivo
Nacional, no Rio de Janeiro, mostram a assinatura do velho Imperador
autorizando a compra de barcos, chatas, cavalos e tudo o que fosse
necessário para uma caçada de vida ou morte (mais de morte, certamente) a
Lopez. Não bastava derrotar o déspota esclarecido, o republicano que os
humilhava, o que havia desafiado os impérios da Inglaterra, do Brasil,
da Espanha… Era preciso assinar seu epitáfio e esculpir sua lápide. E
assim foi feito.
Derrotados, nunca mais fomos os mesmos. Passamos a ser conhecidos por
uma República já bicentenária, mas atrasada em comparação aos vizinhos.
Enfrentamos uma guerra cruel com a Bolívia na primeira metade do século
passado. Roubaram-nos importante faixa territorial do Chaco, região
paradoxalmente inóspita e riquíssima. Ganhamos a guerra. Nossos soldados
mostraram a valentia e o patriotismo que brasileiros, uruguaios e
argentinos haviam conhecido mais de meio século antes. Nossa incipiente
aviação militar e seus jovens pilotos assombraram os experts
norte-americanos pela refinada técnica e pelo sucesso de suas ações
contra o agressor. Mas, numa história prenhe de ironias, vencemos a
guerra e… jamais recuperamos as terras! Os bolivianos, que jamais olham
nos olhos nem das pessoas nem da história, certamente se rejubilam em
sua “andina soledad” e, como os argentinos depois da inexplicável Guerra
das Malvinas, sabem-se “vice-campeones”…
Mal saímos da Guerra do Chaco e experimentamos a mesma e usual
crônica tão comum a rigorosamente todos os outros países
latino-americanos. Golpes e contra-golpes, instantes de democracia e
hibernações em ditaduras ferrenhas. Presidentes se sucederam
despachando no belíssimo Palácio de Lopez e vivendo na vetusta mansão de
Mburuvicha Roga (“A casa do grande chefe”, em guarani). Uns razoáveis,
outros deploráveis. Nenhum deles, entretanto, recuperou a glória perdida
dos anos de riqueza, opulência e fartura. Um herói da Guerra do Chaco
tornou-se ditador e nos oprimiu por mais de três décadas. Homem duro,
mas de hábitos espartanos e por demais interessante, o multifacético
Alfredo Stroessner não recusou o papel menor de tirano, mas construiu
com o Brasil a estupenda hidrelétrica de Itaipu, a maior obra de
engenharia de seu tempo, salvando o Brasil de previsível hecatombe
energética. Foi parceiro e amigo de todos os presidentes do Brasil de JK
a Sarney. Com os militares pós-64 deu-se às mil maravilhas, mas foi de
suas mãos que o exilado João Goulart recebeu o passaporte com que
viajaria para tratar sua saúde com cardiologistas franceses. Deposto, o
velho ditador morreu exilado no Brasil. Nós que o combatíamos (nasci em
Buenos Aires, onde meu pai, empresário de sucesso mas adversário da
ditadura, curtia seu exílio) jamais soubemos de ação qualquer, uma que
fosse, do Brasil em seus governos democráticos contra a ditadura do
general que lhes deu Itaipu.
A vez de Fernando Lugo
Depois de duas décadas da derrubada de Stroessner, nos aparece
Fernando Lugo. Sua história é peculiar. Era bispo de San Pedro,
simpaticão e esquerdista, pregava aos sem-terra e parecia não incomodar
ninguém, nem aos fazendeiros da área. Pelos idos de 2007 o então
presidente Nicanor Duarte Frutos, um jovem jornalista eleito pelos
colorados, resolve seguir o péssimo exemplo de Menem, Fujimori e
Fernando Henrique, e deixa clara sua vontade de mudar a Constituição e
permanecer na presidência, valendo-se do instituto inexistente da
reeleição. Seu governo era mais que sofrível e ─ desculpem-nos a
imodéstia lastreada em nossa história ─ nós, os paraguaios, não somos
dados ao desfrute de mudar nossa Carta Magna ao sabor da vontade de
presidente algum.
O país se levantou contra a aventura e ele, o bispo bonachão,
justamente por não ser político e garantir que não alimentava qualquer
ambição de poder, é escolhido para ser o orador de um grande ato
público, com dezenas de milhares de pessoas reunidas no centro de
Assunção. Pastoral, envolvente, preciso, o Bispo de San Pedro cativou a
multidão, deu conta do recado e catalisou a imensa indignação da
cidadania. A aventura continuísta de Nicanor não foi bem-sucedida, mas,
com a sutileza de um príncipe da Igreja nos intricados concílios que
antecedem a fumacinha branca no Vaticano, nos aparece um candidato forte
à presidência da República: ‘habemus candidatum’! A batina vestia mais
que um pastor, escondia um homem frio, ambicioso, ingrato e
profundamente amoral.
Seu primeiro problema foi com a Santa Madre Igreja. A Santa Sé,
certamente por saber algo que nós não sabíamos, vetou sua disposição
política. Não, ele jamais poderia ser candidato. A igreja católica
combateu a ditadura do general Stroessner com imensa coragem e ações
firmes, mas não queria ocupar a presidência do país. “Roma locuta, causa
finita” (“Roma falou, questão decidida”). Mas não para Lugo, que deixou
seu bispado, despiu a batina e virou as costas a quem o educou e
acolheu em seu seio. Poucos e corajosos colegas, bispos e padres,
ousaram apoiá-lo abertamente. Na última sexta-feira, depois de três anos
sem vê-lo ou serem por ele procurados, esses mesmos amigos e apoiadores
foram até a residência presidencial pedir ─ em vão ─ que Lugo
renunciasse à presidência do Paraguai para que se evitasse derramamento
de sangue. Com frieza, o homem seduzido pelo poder disse
não, levantou-se e despachou aqueles inoportunos portadores da palavra divina.
Candidato sem partido, favorecido pela simpatia da clara maioria do
eleitorado, filiou-se ao centenário e respeitável PLRA, dos liberais, há
mais de 60 anos fora do poder e com a respeitável bagagem de uma
corajosa oposição à ditadura stroessnista. Como um Jânio Quadros, Lugo
filiou-se ao Partido Liberal Radical Autêntico e usou sua bandeira, sua
história e sua estrutura capilarizada em toda a sociedade paraguaia. E
depois deu-lhe um adeus de mão fechada, frio e indiferente.
Eleito, desfez-se de todos os companheiros de jornada. Um a um.
Stalin não apagou tantos nas fotos oficiais do Kremlin como o ex-bispo o
fez. Por sinal, demitiu os mais qualificados. Restaram-lhe os
cupinchas, os facilitadores de negócios e de festinhas íntimas, os
“operadores” e alguns incautos esquerdistas para colorir com as tintas
de um risível ‘socialismo guarani’ o governo de um homem que chegou como
o Messias e terminaria como um Judas Escariotes.
Lugo poderia emprestar seu nome e sua vida política (e pessoal,
também) ao mestre Borges e tornar-se uma das impressionantes personagens
da “História Universal da Infâmia”. Um infame, não mais que isso! Mal
foi eleito e empossado, sucedem-se escândalos e se revela seu
procedimento moral. Filhos impensados para um Bispo supostamente casto.
Vários. Todos jamais reconhecidos ou amparados, gerados com mulheres as
mais pobres e sem instrução alguma, do meio rural, humilhadas depois de
usadas, uma delas com apenas 16 anos quando engravidou. Se traíra a sua
Igreja, por qual razão não nos trairia?
Durante seus três anos de governo, não passou um mês sequer sem
viajar a um país qualquer. Com razão ou sem nenhuma, tanto fazia, lá se
ia ele, o alegre viajante para conferências esvaziadas ou cerimônias de
posse de mandatários sem importância para o Paraguai. As pompas do poder
o abduziram como a nenhum déspota de república bananeira do Caribe. Os
comboios de limusines com batedores estridentes, as festas e beija-mãos,
os eternos e maviosos cortesãos do poder, as belas mulheres, as mesas
fartas, os hotéis cinco estrelas, a riqueza, a opulência, os “negócios”.
O despojado ex-bispo tornou-se grande estancieiro, senhor de terras,
plantações e gado. O presidente que tomou posse calçando prosaicas
sandálias, símbolo de humildade, revelou-se um homem vaidoso e
fetichista. Como que a vestir a mentira em que ele próprio se tornou,
passou a envergar elegantes e bem-cortadas túnicas encomendadas a
alfaiates da celebérrima e caríssima Savile Row, templo londrino da moda
masculina. No detalhe, o estelionato (mais um): colarinhos
eclesiásticos. Afeiçoou-se a lindas e jovens, digamos, “modelos”, que
floriram sua vida e a imensa banheira Jacuzzi que mandou instalar na
austera e velha residência presidencial. Muitas delas o precediam mundo
afora, esperando-o em hotéis fantásticos e palácios, nas vilegiaturas
internacionais. Viajavam com documentos oficiais. Kaddafi proporcionava
passaportes diplomáticos a terroristas, Lugo, a prostitutas.
O veto de Itaipu
Sua afeição pelos jatinhos e jatões chegou às raias do fetiche:
passou boa parte de seu peculiar mandato a bordo deles. Fretados a
empresas de táxi aéreo de outros países, mandados pelos amigões Hugo
Chávez e Lula, outros emprestados por uns tais e misteriosos amigos.
Chocou-se com o brasileiro Jorge Samek, fundador do PT e competente
gestor, que na presidência brasileira da Itaipu resolveu vetar capricho
juvenil do ex-bispo e delirante presidente: a poderosa binacional
compraria um jato para seu uso. Um Gulfstream estaria de bom tamanho,
quem sabe um Falcon, ou até um brasileiríssimo Legacy, mas ele precisava
ardentemente de um jato para chamar de seu. Depois mandou que o
comandante da Força Aérea negociasse um Fokker 100, adaptado com suíte e
ducha. Nada feito, o raio de ação seria pequeno e ele precisava ganhar o
mundo. Por fim, nos estertores de seu governo, entabulava a compra de
um Challenger, usado mas chique, de um cartola do futebol paraguaio. O
preço, como sempre, mais um escândalo da Era Lugo: pelo menos o dobro de
um modelo novo, saído de fábrica…
Obras viárias? Imagine. De infraestrutura? Nenhuma. Modernização do
país? Nem pensou nisso. Crescimento econômico? Sim, mas por obra de uma
agricultura forte, de empresários jovens e ambiciosos, de uma indústria
florescente e de um ministro da economia, Dionísio Borda, que destoou da
regra geral do governo Lugo: competente e austero, imune às vontades do
presidente e distante da escória que o cercava. A cada novo dia, no
parlamento, nas redações, nos sindicatos, nos foros empresariais, nos
encontros de amigos, um novo comentário, uma nova história de mais uma
negociata dos assessores e companheiros de Lugo. Proporcionalmente, nem
na ditadura de Stroessner (mais de três décadas) se roubou tanto quanto
no governo pseudo-esquerdista de Fernando Lugo (menos de três anos). Já
com Lugo deposto, seu secretário mais forte, Miguel Lopez Perito,
telefonou à diretoria da Itaipu solicitando a bagatela de US$ 300 mil
para organizar uma manifestação em defesa do governo. Queria ao vivo e
em cores, “na mala”, por fora, não contabilizado, no “caixa 2″. Que tal?
O fato, relatado por um diretor da binacional, é revelador do
modus-operandi da verdadeira quadrilha que comandava o país.
O impeachment
Seu processo de “Juízo Político” ─ algo como um processo de
impeachment ─ está previsto na Constituição do Paraguai. Não foi uma
travessura histórica de meia dúzia de líderes políticos ou
parlamentares, tampouco um revide às descortesias de Lugo para com os
partidos, os empresários, os paraguaios todos. Que tipo de presidente
era esse que teve 73 deputados votando por sua queda contra apenas 1
solitário voto? Que espécie de chefe da Nação era esse que teve 39 votos
contrários no Senado contra apenas 4 de senadores fiéis ao seu
desgoverno? Não teve tempo, apenas duas horas para defender-se, dizem.
Ora, a Constituição não determina tempo, apenas assegura o direito de
defesa, exercido através de competentíssimos advogados, que fizeram
exposições brilhantes na defesa do indefensável. Um deles, Dr. Adolfo
Ferreiro, admitiu claramente que o processo era legal. De outro, Dr.
Emilio Camacho, em imponente ironia da história, os magistrados da
Suprema Corte extraíram em um de seus celebrados livros aqueles
ensinamentos necessários e a devida jurisprudência para rechaçar chicana
jurídica do já ex-presidente contra o processo legal, constitucional e
moral que o defenestrou. C’est la vie, Monsieur Lugo!
Em Curuguaty, num despejo de terras ocupadas pelos “carperos” (os
sem-terra daquí), houve dezenas de mortes de ambos os lados. Lugo e seu
ministro do Interior, o belicoso senador Carlos Filizzola, foram
avisados de que havia uma emboscada pronta para as forças militares. Com
a empáfia e a absoluta irresponsabilidade que os caracterizaram do
primeiro ao último dia, e fiéis aos amigos que manejam o MST daqui e
infernizam a vida de nossos produtores rurais (entre os quais os 350 mil
brasileiros que aqui plantam, colhem e vivem, nossos irmãos
“brasiguaios”), ambos ordenaram a ação que se tornou uma tragédia na
história de nosso país. Poderia citar, também, o EPP (Exército do Povo
Paraguaio), guerrilha formada por terroristas intimamente ligados a Lugo
em seus tempos no bispado de San Pedro. Jamais as forças de segurança
puderam fazer nada contra eles. Mapeados, identificados, monitorados e
livres! Lugo se manteve fiel aos bandidos pelos quais mostra clara e
pública afeição. Como o respeitado Belaúnde Terry, no Peru, que permitiu
com seu “democratismo” o crescimento do terror representado pelo
Sendero Luminoso de Abimael Guzmán, o nada respeitável Lugo é o pai e a
mãe do EPP.
Um hiato na história
Fernando Lugo foi um acidente em nossa história. Necessário, mas
sofrido. Seus defeitos superaram suas virtudes. Aqueles eram muitos,
essas muito poucas. Nós que nele votamos, sequiosos de um Estadista, nos
deparamos com um sibarita. Seu legado é de decepção e fracasso. Não
choraram por ele dentro de nossas fronteiras, e os que o defendem fora
delas o fazem muito mais pensando no que lhes pode ocorrer do que por
solidariedade ao desfrutável governante e desprezível homúnculo que cai.
O fim de seu governo dói mais a um já dolorido Chávez do que a nós. A
senhora Kirchner, radical na condenação que nos impõe, se esquece de
nossa parceria na importante e gigantesca usina hidrelétrica de
Yaciretá, e amplia sua lucrativa viuvez acolhendo em seu seio choroso o
decaído amigo. Solidária? Nem tanto, apenas oportunista, e ciente de que
se abriu o precedente para que os parlamentos expulsem os incapazes. Na
Bolívia, o sentimento popular em relação ao sectário e também
bolivariano Evo Morales não é diferente do sentimento dos paraguaios por
Lugo no outono de sua aventura presidencial. É pior. O relógio da
história irá tocar as badaladas do fim de uma aventura improdutiva,
raivosa, racista e liberticida.
A posição brasileira
Não compreendemos a posição do Brasil. Ou não queremos compreender,
tamanho é o bem que lhe queremos. O Brasil nos arrasou como sicário da
Rainha Vitória. Nós o perdoamos e juntos construímos o colosso de
Itaipu. Nós o tratamos bem e ele defende a continuidade de uma das
piores fases de nossa história. Em nome do quê? Nega-nos o direito à
autodeterminação, mas se esquece do papelão ridículo que fez em defesa
de um cretino como Zelaya, um corrupto ligado a grupos somozistas de
extermínio e que era tão esquerdista como Stroessner e tão democrata
quanto Pinochet.
Foi deplorável o papel do inexpressivo chanceler Patriota (que não se
perca pelo nome), saracoteando pelas ruas de Assunção em desabalada
carreira, pressionando os partidos Liberal e Colorado em favor de um
presidente que caía. Adentrando o Parlamento ao lado do chanceler de
Hugo Chávez, o Sr. Maduro, para formular ameaças em benefício de um
presidente que o país rejeitava. Ou indo ao vice-presidente Federico
Franco ameaçá-lo com imensa desfaçatez, desconhecendo seu papel
constitucional e o fato de que ninguém renunciaria a nada apenas por uma
ameaça calhorda da Unasul (que não é nada) e outra não menos calhorda
do Mercosul (que não é nada mais que uma ficção). O Barão do Rio Branco
arrancou seus bigodes cofiados no túmulo profanado pelo Itamaraty de
hoje.
O que quer o governo Dilma? Passar pelo mesmo vexame de Lula na
paupérrima Honduras? Nós temos imensa disposição de manter uma parceria
que se revelou positiva e decente para ambos os países. Mas a austera
presidente não nos inspira o mesmo terror-medo-pânico que infunde nos
seus auxiliares e ministros. Cara feia não faz história, apenas corrói
biografias. Dilma chamou seu embaixador em Assunção, Cristina fez o
mesmo. As matronas radicais só não sabiam que o embaixador brasileiro é
um ausente total, passando mais tempo em Pindorama do que aqui. O
embaixador Eduardo Santos é tido no Paraguai como alguém que acredita
que as melhores coisas em nosso país são ar condicionado e passagem de
volta. Recorda o ex-embaixador Orlando Carbonar, que foi pego de
surpresa em fevereiro de 1989 pelo movimento que derrubou o general
Stroessner. Até meus filhos, crianças naquela época, sabiam que o golpe
se avizinhava e que estouraria a qualquer momento. Só não sabia disso o
embaixador brasileiro, que descansava no carnaval de Curitiba, onde
nasceu. Voltou às pressas, num jatinho da FAB, para embarcar Stroessner
rumo ao Brasil. E a Argentina… Bem, a Argentina não tem embaixador no
Paraguai faz alguns meses… Ocupadíssima, Dona Cristina não nomeou seu
substituto. País de necrófilos (amam Gardel, Che, Evita e Maradona,
entre outros defuntos), chamou um embaixador que não existe, um
diplomata fantasma, para consultas na Casa Rosada.
O Paraguai fez o que tinha que fazer. Seguirá adiante, como seguem
adiante as Nações, testadas e curtidas pelas crises que retemperam a
cidadania e reforçam a nacionalidade. O religioso que não honrou seus
votos de castidade e pobreza e traiu sua igreja foi por ela rejeitado. O
presidente que não honrou nossos votos e nos traiu por nós foi deposto.
Deposto por incapaz, por mentiroso, por ineficiente, por desonesto. Mas
principalmente por ter traído as esperanças de um país e de um povo que
precisaram dele e nele confiaram. Por isso, Lugo não voltará.
(*) Chiqui Avalos é um conhecido escritor e jornalista paraguaio.
Combateu a ditadura de Stroessner e apoiou a candidatura de Fernando
Lugo. É editor de “Prensa Confidencial”, influente boletim
digital editado em Assunção.
Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/feira-livre/a-guarania-do-engano-por-chiqui-avalos/